domingo, 25 de janeiro de 2009

Matéria Negra

Uma cadência sonora abismal, uma distorção anacrónica e um ruído branco ululante no éter em tom de acompanhamento. O vórtice sonoro espanta-nos ao mesmo tempo que nos atrai, como se de algo alienígena se tratasse. Uma vez nele embrenhados somos transportados para mundos oníricos de brumas e ferrugem, de escuridão e metais ardentes. Nesse abismo para além da barreira de som e do ritmo hipnotizadoramente macabro, jaz a ameaça xenomórfica, o parasita que nos devora as entranhas.


"Useless climate, staring at me,
Yearning to be free.
The Unpredictable sense of a short road.
An epidemic that comprehends"

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Taxifahrt

Sem a mínima predisposição para esperar quase uma hora pelo cacilheiro da meia noite e vinte, tomo a brusca decisão de apanhar um táxi até Almada. Como não sou capaz de viajar sozinho no banco traseiro e porque meter conversa faz parte da experiência, em poucos minutos já o taxista começou a contar a história da sua vida, ao ponto de se enganar na saída para a ponte. A meio do caminho lá se lembra de perguntar: "Então e o senhor o que faz?", "Sou tradutor" - respondo eu. "Ora bem, uma profissão bastante útil". Esboço um sorriso, mas no fundo fico a matutar: simpático ou condescendente...?

Ode Disléxica

Não há nada melhor do que matar saudades, principalmente quando se trata de alguém de quem realmente gostamos. Retidos na memória ficam o restaurante tipicamente português no poético Bairro Alto, uma farta refeição e uma bela garrafa de vinho tinto: o perfeito acompanhamento para uma prazenteira noite na companhia de uma pessoa que tanto admiro. Acredito piamente que o profundo grau de introspecção, assim como o nível de abstracção da interminável conversa serão fonte de abundantes comentários por parte dos empregados da casa, de estranhar se porventura tal fosse novidade. Atravesso o rio e chego a casa saciado, não por causa da refeição, mas devido à deliciosa e interminável tagarelice temperada com fundamentados argumentos e bonitas questões. Tudo isto cortesia "daquela menina dos olhos castanhos".

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

O meu gato queimou-me a bíblia

Com ânsia e aflição procurava eu por toda a casa. Mas afinal de contas por onde andaria ela? O Domingo aproximava-se como um furacão vagaroso, o que significava que já não me restava muito tempo para preparar os meus textos e orações, mas para tal era imperativo encontrar a minha Bíblia primeiro. Gostava de levar os textos preparados com antecedência para melhor compreender a mensagem do sermão do senhor padre, e por outro lado, tinha uma tendência diabólica para me esquecer que nem um amnésico das orações que apenas tive oportunidade de praticar todos os Domingos nos últimos vinte anos. Era pois crucial encontrar o sagrado livro. Procurei, procurei, procurei. Nas estantes, nas gavetas, nos armários, na dispensa ao pé dos Kellogs e na casa de banho por debaixo do banco onde me sento a cortar as unhas dos pés. Mas por mais que inspeccionasse o apartamento não encontrava aquilo que realmente queria. De repente vem-me ao nariz o cheiro a fumo, desato a correr na sua direcção e deparo-me com o meu gato a queimar a minha bíblia com gasolina enquanto se ria à gargalhada:
"Olha 'pra essa merda. Como é que eu vou rezar agora, és capaz de me dizer...?"
Em jeito de resposta o formoso felino rebola-se no chão segurando a barriga com as patas dianteiras e rindo-se de forma estridente.
" 'Tás-te a rir mas não és tu que vais aturar o aselha do padre amanhã. Como raio é que eu vou agora adorar o Divino? As vizinhas vão dizer que eu não percebo nada destas coisas de igreja e o caraças..."
O bichano recompõe-se lentamente, senta-se bem direito e olha-me nos olhos com um sorriso no focinho:
"Estás mesmo à espera que responda, certo?" - disse o meu gato.
"Ora então, pois claro."
"Nesse caso ouve com atenção: essa tua acepção de crença mais não é do que uma metástase onírica desprovida de discernimento, um oxímoro se preferires. O seu efeito limitado a uma corrida sem meta para nenhures. Entendes-me?"
Segue-se um momento de complacente e desconfortável silencio.
O bichano sacode as orelhas: "E então, não dizes nada?"
"Estou seriamente a pensar em abandonar-te..."
"Pois, avisa-me quando isso for novidade..."