segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

- Advertência -

O conjunto de publicações que se segue, consistindo em 6 partes e um epílogo, mais não é que um despretensioso esforço experimental de teor mais literário. Para o efeito, não serão desvendadas quaisquer fontes jornalísticas ou factos verídicos subjacentes à sua elaboração. Mais se declara que o autor não assumirá qualquer responsabilidade por eventuais ataques de pânico, surtos de insanidade ou tentativas de suicídio que possam advir da leitura do texto que se segue.

Cordialmente,
R.M.

No Limiar Oculto da Demência - Pt.1

Randolph Carter não se apresentava nem lúcido nem embriagado enquanto jazia imóvel sobre a cama rija e desconfortável de uma pensão paroquial. Ele próprio não era crente mas se mentisse de uma maneira minimamente decente ao velhote da entrada podia ter direito a um quarto imundo sem qualquer despesa. O quarto fedia com os odores de antigos hóspedes: toxicodependentes sem onde cair mortos, prostitutas em idade de reforma e bêbedos inveterados. O papel de parede com vinte anos descolava-se aos poucos das paredes, as inúmeras manchas na alcatifa traziam à tona memórias de decadência, o guarda-fato em ruínas e as queimaduras de beatas por todo o lado invocavam uma recordação agonizante. A lâmpada no tecto pendia pelo fio sem qualquer protecção e iluminava de forma intermitente, obrigando Carter a contemplar o seu quarto através de flashes inconstantes e acompanhados de zumbidos agudos e metálicos. Da fresta da sua janela recebia apenas um fraco clarão pálido de um candeeiro de rua há muito esquecido. Os únicos sons que recepcionava advinham de um alarme à distância e de um rolar cadente de garrafas de vidro. A televisão recusava-se a funcionar, respondendo às suas insistências com um mero ponto branco no centro do ecrã. Sendo este a única fonte de luz contínua presente entre as quatro paredes, Carter permanecia inerte sobre o colchão rasgado por baratas, junto a uma parede com um crucifixo maciço, enquanto observava fixamente o ponto de luz branca à sua frente. Por alguma razão, a intermitência amarela da luz acima parecia-lhe menos enlouquecedora do que a escuridão quase total.

No Limiar Oculto da Demência - Pt.2

Pensava sobre os seus últimos achados e sobre os rendimentos que estes poderiam trazer junto da loja local de penhores. Eram da sua preferência os artigos de ouro, os quais desenterrava de acordo com critérios bem definidos relativamente ao aspecto e envergadura da lápide. Há muito que ponderava uma mudança na sua ocupação laboral, mas as pessoas vivas eram demasiado complicadas, e desde sempre preferira negociar com os mortos como forma de obter os lucros que lhe iriam garantir a próxima garrafa de vinho. As suas equações foram de certa forma interrompidas por uma alteração no ponto brilhante e televisivo em sua frente, pois agora parecia pulsar com o ritmo de um coração alienígena. Não se inquietou, pensava de momento na povoação onde se encontrava, a qual havia sido generosa para com ele. Nessa localidade deparou-se a altas horas da noite com um cemitério de aparência aristocrata, com pormenores de grande beleza, uma vegetação rica e forte, e para seu gáudio, com sepulturas e sepulcros de grande antiguidade e ostentação. Essa noite fora altamente lucrativa. Os seus pensamentos foram novamente interrompidos pelos passos pesados do velho da recepção, o qual, muito provavelmente bem inebriado, se arrastava escada acima para o seu quarto no andar por cima do de Carter. O som grave dos passos é seguido do bater de uma porta, que Carter tenta forçosamente ignorar para voltar aos seus pensamentos. Os seus esforços são todavia em vão, quando do quarto de cima surgem gritos de raiva que adivinham violência. Sem esboçar qualquer reacção, Carter consegue distinguir uma voz feminina e idosa no intervalo dos berros, uma voz suplicante e sofrida que rapidamente é interrompida por sons secos muito semelhantes a pancadas fortes. Um velho insignificante, que após um dia inteiro a tolerar a escória da sociedade decide descarregar um mundo de frustração sobre uma pobre amostra de ser humano, não é nada que Carter nunca tenha visto ao longo da sua vida de eremita. Após alguns segundos o tumulto acalma-se e dá lugar a um balbuciar sofrido que Carter pode muito bem desprezar.

No Limiar Oculto da Demência - Pt.3

A atenção de Carter volta-se novamente para si mesmo. Fecha os olhos, respira fundo, pestaneja uma vez e começa a... - interrompe-se - ...abre outra vez os olhos e questiona-se como foi possível não ter reparado na negra e bem tecida teia de aranha no tecto, mesmo por cima de si (se é que tal forma possa ser considerada uma teia...). Não interessa, a sua mente retorna ao antiquíssimo cemitério que tanta felicidade e riqueza lhe trouxeram. Recorda uma a uma, as magníficas campas que prazenteiramente profanou, principalmente uma cuja lápide cheia de rachas não apresentava qualquer inscrição. Esta havia despertado nele um invulgar interesse pela sua singularidade, aparentava ser anterior a todas as outras sepulturas. O que nela observara fora de tal forma incredível, que questionava a sua veracidade. Os olhos de um homem embriagado não são de alguma forma fiáveis, mas que a imagem havia ficado gravada na sua memória, disso não havia dúvida. Desde os tempos de infância que ouvira histórias acerca do fenómeno da não decomposição de cadáveres, histórias de corpos imunes à putrefacção, dos quais nenhum verme ousava aproximar-se. Todavia, histórias não passam disso mesmo, ao passo que o cadáver pálido e de aspecto hermafrodita que então encontrara lhe parecera pura realidade. Não restava sobre ele qualquer réstia de indumentária, mas o sua aparência extraordinária, anormal e ao mesmo tempo perfeita, não indicava qualquer sexo. Mas o que causara o profundo horror no rosto de Carter foram os olhos esbugalhados que insistiam em observar o céu estrelado, olhos tão fixos que era quase possível crer que haviam sido eles a causa da inverosímil queimadura na tampa de caixão removida. Contudo, a realidade pode ser limitada pelo entendimento de cada um, e uma vez negada Carter encontrou as forças para remover a pulseira dourada do pulso daquele estranho ser. Esta encontrava-se ainda reluzente, contendo ornamentos totalmente únicos e uma série de símbolos que em nada se assemelhavam a algo escrito por uma mão humana. Pelo canto do olho, o ladrão de campas poderia jurar que o irreal cadáver olhava na sua direcção enquanto este procedia ao seu furto, mas achou por bem não o confirmar - para que piorar uma bebedeira já por si má.

No Limiar Oculto da Demência - Pt.4

Carter respirou fundo no desconforto do seu execrável quarto e procurou focar-se no esplêndido lucro que iria adquirir muito em breve. A lâmpada por cima de si fazia agora intervalos de escuridão demasiado prolongados. Num desses breves períodos de fatídica luminosidade pôde observar algo de feitio insectívoro, talvez aracnídeo, junto à construção que se assemelhava a uma teia cor de vulto. No andar de cima emergia novamente uma voz embutida de ódio e agressão. "A pobre velha está cheia de sorte se conseguir sobreviver mais uma noite" - pensava Carter para si mesmo.
"Acreditas em consciência Carter?"
"Se acreditasse não estava aqui agora" - respondeu ele ao ser aracnídeo.

No Limiar Oculto da Demência - Pt.5

"Não seria tudo mais fácil se simplificássemos?"
"É o que eu 'tou farto de dizer." - suspirou Carter.
"A quem?! Aos mortos?!" - O ser deslocou-se lentamente pela parede abaixo, fez um corte cirúrgico no ombro do homem e introduziu-se delicadamente sob a sua pele.
"Fazes comichão e fica sabendo que não vale a pena falar com os vivos, eles não escutam."
"Já alguma vez sequer tentaste?"
"Este é o sonho mais estranho que já tive.." - acrescentou Carter enquanto esboçava um sorriso.
"Nesse caso, porque não tentas pela primeira vez."
"Tudo bem, desde de que pares de me maçar."
O inerte homem moveu-se finalmente para retirar o crucifixo que pendia sobre si e deslocou-se em direcção ao corredor. Conseguia sentir o aracnídeo alienígena a subir pelo pescoço acima. Abriu a porta e começou a subir as escadas. O intruso parecia ter duplicado o seu tamanho, pois sentia as suas patas bicudas a raspar no interior do seu crânio. Estacou frente à porta do vizinho de cima:
"Vamos lá então simplificar".

No Limiar Oculto da Demência - Pt. 6

A porta abriu-se de rompante com um estrondo. Lá dentro uma idosa acocorava-se a um canto, demasiado ocupada a sangrar para se dar conta do que quer que fosse. Frente a ela um velho cambaleante e desorientado como um cão com raiva, interrompe a sua deambulação e vira-se incrédulo para a entrada do quarto. Impávido e sereno Carter atira o insignificante velho ao chão com um pontapé no peito. Com uma calma irreal, coloca os seus joelhos sobre os ombros do idoso, imobilizando-o. De seguida ergue o crucifixo com a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo bem sobre a sua cabeça, apenas para o fazer descer repetidamente sobre a cabeça do ser ainda vivo que se encontra por debaixo de si. As primeiras pancadas mais não fazem que partir alguns ossos, à medida que estas continuam o crânio deforma-se a pouco e pouco, ouvindo-se o som de algo forte a rachar; os esforços prosseguem e já se avista massa cerebral a abandonar os ouvidos, cada pancada é acompanhada de um espasmo de sangue e fluído. A simplificação pára quando o crucifixo bate no soalho e a figura do Salvador saí disparada para meio da poça de sangue.
"Mais simples não há! Agora saí da minha cabeça de uma vez por todas!" - bradou Carter com toda força que lhe restava.
Logo de imediato o sangue desata a escorrer em catadupa por todos os orifícios da sua cara, ouve-se um estalo agudo e penetrante quando o crânio subitamente se divide ao meio. Seis garras, que mais parecem patas de um qualquer insecto horripilante, saem gradualmente do topo da cabeça de Carter, alargando a racha para dar lugar a um corpo insectívoro e viscoso. A criatura move-se agora de encontro à triste amostra de ser humano, ainda encolhido no canto do quarto e introduz-se violentamente nas entranhas da pobre idosa:
"A senhora acredita em consciência?"

No Limiar Oculto da Demência - Epílogo

Passaram-se semanas desde que o incidente com o ladrão de campas fez as manchetes por todo o país. A pensão está agora indefinidamente fechada e a população local ponderou seriamente demoli-la. As fitas policiais continuam a fechar o perímetro em seu redor, ao passo que as buscas por uma certa idosa desaparecida se revelam infrutíferas e são canceladas. Praticamente todos os bens roubados são restituídos aos seus legítimos donos, como forma infantil de restituir alguma santidade às suas sepulturas. Contudo, um determinado artigo permanece inatribuível, uma enigmática pulseira de ouro reluzente sem qualquer tipo de gravação ou inscrição.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Merry fucking Christmas!!

Pois é, pois é... a besta viscosa das profundezas regressou da sua dormência no fundo do fétido abismo para, como de costume, não dizer nada de jeito...

A vespéra natalícia já vai dando os últimos petardos e eu acho que ando com uma dor de cabeça por dormir demasiado (fodam-se! já chegam as noites em que não durmo nada de jeito!). Esta última semana foi praticamente toda dedicada à família, logo, não fiz nada de jeito... a não ser, creio eu, ter batido o meu recorde pessoal de permanência na mesa sem qualquer tipo de pausa (o que não é fácil... é preciso estômago..). No rescaldo o resultado até foi positivo, afinal o Natal sempre consegue ser qualquer coisinha para além do Cristo Rei da Samsung, da Árvore de Natal da Zon e do Marquês do Pombal da Tmn. E por falar nisso, espero sinceramente que para o ano já existam implantes cerebrais, pois assim sendo não hesitarei em pedir um anti-spam cerebral ao menino jesus no próximo Natal!
Quanto às tristes almas penadas que porventura tenham a infelicidade de ler este horroroso post, espero que tenham aproveitado o vosso Natal para não fazer nada de jeito, pois é sempre bom sinal quando tal acontece!

Cheers!!

Aparte: a árvore de natal em Almada pode não ser a maior da Europa, mas pelo menos não irrita com aquelas músicas infernais de Natal e, acima de tudo, é propriedade exclusiva da Câmara Municipal (vai buscar!!).