domingo, 31 de agosto de 2008

Stories from the Stereo

Vale a pena pôr leitor de CDs a trabalhar para ouvir:

- o Nick Cave a mandar tudo e todos à merda.
- o Zappa a tocar um solo de guitarra improvisado durante 10(!) minutos
- o Dani Filth a berrar como um gato assanhado do inferno
- o Jarre a tocar o teremin como um verdadeiro virtuoso
- o Adolfo Luxúria Canibal a destilar ódio
- o Ian Anderson a roubar o espectáculo com solos de flauta completamente lunáticos
- o Ozzy a dedicar letras de paixão à sua amada cocaína

e por último, as magníficas rimas do Mestre Kilmister dos Motörhead:
"We are the first and we just still might be the last.
We are Motorhead - born to kick your ass!"

Cavaquinho do Demo

A visita de ontem foi à reputada Feira do Mel no castelo de Sesimbra. A noite estava húmida e a névoa corria como um fantasma por detrás da torre do forte. À chegada, mesmo antes de ter tempo de ver o que quer que fosse, chega-me aos ouvidos o som de um açude a marcar o compasso para uma voz feminina muito bem afinada. Cantava-se em português, só que desta vez e para variar, não me soava a estranho. Sem aviso surge uma gaita de foles mirandesa e algo que se assemelhava a uma guitarra portuguesa. Do lado direito do palco tocava um mui competente baterista, que sem dificuldade encostava a um canto muitos outros que eu já tenho visto. Já não consegui arredar pé de junto do palco. A música sucedia-se ora em ritmo frenético, ora em passo hipnotizaste. Os instrumentos, das mais diversas origens populares, debitavam uma sonoridade que muito devia ao tradicional e ao folclore, sem que alguma vez deixasse de ser inovadora. Um concerto fabuloso do principio ao fim, contagiando todos em redor.

"Mas porquê raio é que nunca ouvi falar destes gajos?! Se fizessem música de merda tenho a certeza que já todos os conheciam..." - é verdade, por debaixo do monte de estrume que passa na rádio todos os dias, ainda conseguem existir bandas portuguesas realmente excepcionais, que em muito dignificam a língua-mãe. Pena é que sejam desprezadas em prol da mediocridade das ondas radiofónicas. Mas...é provável que seja melhor assim, para que estragar uma banda tão boa como os Dazkarieh...

Deixei a feira com excelente concerto na memória e com um cd novinho em folha comprado directamente à banda junto da mesa de som. Quanto ao mel, acho que havia para lá algumas bancadas a vender, mas(!) não posso confirmar...

terça-feira, 26 de agosto de 2008

...com o jantar à espera...

Bem...estou neste momento no escritório à espera que o simpático Sr. Nirmal Singh se digne a aparecer para que possa finalmente dar por concluído o dia e ir para casa, mas uma vez o que o amigável Indiano tende em se atrasar, aproveitei p'ra dar por aqui uma vista de olhos. E depois de passar os olhos pelos últimos posts não pude deixar de reparar num "piqueno" promenor: que raio de testamentos eu ando pr'aqui a escrever, como se as pessoas não tivessem nada melhor p'ra fazer do que 'tar a ler estas porras que nunca mais acabam.... Dito isto, juro que daqui para frente vou passar a escrever no melhor estilo telegráfico, poupando o tempo de toda gente...excepto! quando estiver entusiasmado com alguma merda, quando me der aquela inspiração fodida e quando simplesmente não me apetecer. Fica então feita a promessa, com o maior dos compromissos.... e uma vez que já são sete horas, o meu amigo Nirmal vai ter de ficar agarrado....

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

At the Crossroad

Uma lua cheia, polvilhada com pequenas nuvens fantasmagóricas, ilumina de forma intrusiva uma noite húmida e bafienta no delta do Mississippi em Tenessee. As luzes de Memphis encontram-se a quilómetros de distância, e foi aqui, junto a um dos pântanos da região rural, que uma dúzia de Americanos discriminados e segregados construiu do nada a sua ansiada Juke-Joint. Construída com muita vontade e poucos recursos, a humilde construção de tábuas velhas e pregos enferrujados, jaz precária longe de olhares indiscretos. Ela nunca aguentará uma intempérie, ela mal se aguenta às noites de quarta-feira, mas é forte o suficiente para suster em si própria o bradar de um povo e o fervilhar de uma cultura. Aí, bem distante, o espírito pode voar e e cintilar, longe do olhar reprovador da sociedade, longe do dedo acusatório do pastor e acima de tudo longe da opressão das plantações de algodão.

A noite já vai a meio, os músicos dedilham e sopram os seus instrumentos com gotas de suor a escorrer pelas faces. No ar a música hipnotiza, alegra, entristece e liberta. Não há uma única partitura ou pauta musical à vista, estes homens nada sabem da teoria, somente da alma. Os casais misturam-se por obra do acaso e a dança constante eleva a temperatura e os ânimos. Em cantos mais recatados, pares trocam carícias obscenas e beijos sacrílogos, nada que a oração de Domingo não ajude temporariamente a purificar, nem que seja até à semana seguinte. As garrafas de whiskey esvaziam-se como que por magia. "Estás a ver, Deus castiga! Fura-nos as garrafas todas!" - diz um dançarino à sua amante enquanto alcança outra garrafa. Lá fora, alguém ressona junto a uma poça de vótimo, antecipando uma divina dor de cabeça, completamente alheado aos dois indíviduos enlameados que se espancam por alguma razão que nunca será bem entendida.

Contudo, esta noite é diferente. Corre um rumor pelo ar, diz-se que um certo homem poderá aparecer esta noite. Um homem cujo o nome inspira tanta admiração como medo e desconfiança. O seu nome já se espalhou ao longo de todo o Mississippi, e não há um pântano que não tenha reconhecido o seu nome ou o seu rasto. Dizem que ele caminha lado a lado com o Demónio, que é seu amigo e aliado, e que este por sua vez o acolheu como um filho. E tal como todas as coisa que se relacionam com o infernal, este homem era sempre aguardado com profunda ansiedade e temor.

Mas a festa tem de continuar, o amanhã apenas trás infortúnio e mágoa, e aqui, dentro deste barracão reluzente, a música faz esquecer a renda da casa e a apanha nos campos. Os músicos prosseguem com os seus compassos improvisados e sublimes, todavia a carne é fraca mesmo quando a vontade é de ferro. Em breve as mãos ficam dormentes e as costas retesam-se cada vez mais: chega a altura do primeiro intervalo, o tempo ideal para todos recuperarem o fôlego frente a um copo cheio, ao mesmo tempo que se renovam as promessas de amor, tão eternas como uma noite. O burburinho levanta-se e ninguém se apercebeu da sombra que entrou com passos ligeiros e se sentou há uma hora na mesa do fundo. O vulto reconhece o seu momento e levanta-se. Após alguns passos na direcção do improvisado e miserável palco, este transforma-se a pouco e pouco num homem alto e magro. Transporta consigo uma mala de guitarra, o seu fato escuro tem um bom corte e os sapatos estão engraxados como se nunca tivessem atravessado o pantanal lá fora. Os olhares erguem-se quando este se instala no banco de um dos músicos e o tumulto cai drasticamente quando retira da mala a sua viola. A música que ecoa pela sala é diferente de qualquer outra, o seu dedilhar totalmente novo e revolucionário, e a sua voz revibra como um encantamento esquecido algures na memória. O público fica estático de indignação, de adoração, de espanto, de assombro, de pavor, mas nem uma única alma fica indiferente. Acompanhadas por aquela viola possuída, brotam músicas de amor e ódio, de ternura e violência, de esperança e de mágoa. Homens e mulheres escutam a vida transformada em música, uma vida que lhes pertence e que reconhecem em toda a sua plenitude proveniente do músico envolto em trevas.

Porém a música eventualmente termina, tal e qual como começou, sem aviso e sem desculpas. A reacção do público estende-se a toda a escala, desde os aplausos eufóricos em tom de aprovação ao vaiar mais insultuoso. Indiferente, o músico dirige-se discretamente ao dono daquela espelunca, levanta o seu pagamento e transforma-se novamente em vulto para desaparecer por entre os fumos fétidos do pântano. A clientela tem dificuldade em recuperar da intensidade do momento, para alguns a noite está definitivamente arruinada, para outros ela teve um final arrebatador.

Procede-se à lenta retirada, o sol nasce demasiado cedo nesta altura do ano e ninguém quer ser acusado de frequentar um local tão mal afamado. No ambiente de despedida o jovem Levee de 18 anos não deixa escapar a oportunidade de partilhar o seu entusiasmo com o velho Toledo, o veterano baixista:

-"Viste a forma como aquele homem mexia os dedos sobre as cordas! Foi espectacular. Um dia também hei-de de conseguir fazer uma coisa daquelas."
- "Não te entusiasmes assim tanto. Aquela maneira de tocar não era natural, era como se ele tivesse algum tipo de ajuda, como se alguém o ajudasse a puxar as cordas."
- "Do que é que estás pr'aí a falar".
- "Ouve o que te digo, aquele homem transporta consigo algo de sobrenatural. Para onde quer que ele vá ele leva algo nos ombros, algo de maligno."
- "Não me digas que também tu acreditas nesse disparate, esse rumor do músico que vendeu a alma ao Diabo num cruzamento...".
- "Olha que pode ser verdade... tão verdade como aquele homem se chamar Robert Johnson..."

domingo, 24 de agosto de 2008

In Memoriam

O post que se segue não é divertido e muito menos engraçado, mas sim uma tentativa pesarosa de evocar a memória, infelizmente muito esquecida, de duas lendas da história da Fórmula 1. As próximas linhas serão dedicadas aos saudosos Roger Williamson (1948-73) e David Purley (1945-85).

-->Roger Williamson




David Purley <--

Estávamos no mês de Julho de 1973 e o circo da Fórmula encontrava-se no circuito de Zandvoort na Holanda. Nessa época o mencionado desporto não era um espectáculo multi-milionário, cheio de glamour e ostentação como frequententemente sucede na actualidade; da mesma forma que os pilotos que alinhavam na linha de partida não eram de forma alguma jovens mimados e protegidos, mas antes homens de coragem e convicção que arriscavam a vida de forma rotineira, para os quais não era vergonha nenhuma mudar o óleo ao próprio carro. Nesses dias, hoje tão longínquos, os estreante Roger Williamson participava na sua segunda prova de fórmula 1 ao volante de um March 731G, quando a meio da corrida, devido a um problema com o pneu dianteiro esquerdo, alarga demasiado uma curva resultando num espectacular despiste que faz o seu monolugar capotar de encontro a uma barreira de protecção. O acidente danifica gravemente o depósito de combustível do carro, e à medida este desliza com as rodas viradas para cima as faíscas resultantes funcionam como um fósforo, dando a inicio a um incêndio no chassis enquanto Williamson dá por si preso de cabeça para baixo dentro do cockpit.

Quase de seguida o piloto independente David Purley, avista na berma da estrada um March igual ao seu a arder sob uma apavorante nuvem negra, o qual instantaneamente identifica como o sendo do seu amigo. Num dos maiores actos de altruísmo da história da fórmula 1, Purley encosta o seu monolugar e corre de imediato em direcção ao desastre. Por debaixo do metal aquecido e da gasolina flamejante, Purley consegue ainda ouvir as súplicas por socorro do piloto enclausurado. Purley gesticula e clama por auxílio, mas os comissários de pista são escassos e não fazem ideia do que fazer, em puro desespero o próprio Purley tenta por várias vezes virar o carro do amigo com as próprias mãos. Os estácticos comissários são apenas funcionários contratados, sem qualquer tipo de formação ou meios para agir em caso de acidentes graves.

No paddock o director do Grande Prémio, sem se aperceber da severidade do ocorrido, toma uma das piores decisões da sua vida: ao invés de ordenar a bandeira preta e parar de imediato a corrida, opta antes pela bandeira amarela, mantendo os carros em pista. Impossibilitado de seguir pelo caminho mais curto para a área do acidente, o camião de combate ao fogo mais próximo vê-se obrigado a efectuar quase uma volta completa ao circuito para não circular em sentido contrário para com os automóveis ainda em competição.

Na zona do desastre as chamas ganham cada vez mais vigor. Finalmente, um dos comissários consegue rebuscar um extintor que Purley arranca das suas mãos, correndo de novo para junto do carro acidentado. Em apenas alguns segundos, Purley despeja todo o conteúdo do extintor para cima das labaredas, contudo o resultado é frustrantemente nulo. Os comissários permanecem imóveis, impossibilitados de se aproximarem das chamas. Purley acena a alguns pilotos que se aproximam, mas devido à velocidade e à total ausência de comunicações, estes não se apercebem do sucedido, crendo que o carro despistado pertence ao próprio Purley. Por esta altura a nuvem de fumo preto é visível em todo o autódromo e por debaixo de todo esse fumo Purley já não consegue ouvir a voz de Williamson. Numa imagem da mais incisiva frustração, o piloto independente afasta-se com o espírito completamente quebrado. Um infeliz comissário procura consolar Purley, mas este recusa-a com um punho em riste cheio de desdém e despeito.

O camião cisterna chega após quase oito minutos ao local do acidente. Ainda presente, Purley auxilia os bombeiros a exterminar o incêndio. Com o chassis coberto de espuma branca, os homens conseguem finalmente virar o carro. Ainda preso ao cockpit estava Roger Williamson, imóvel e inerte. Os funcionários de pista cobrem o monolugar com um lençol branco. David Purley regressa cabisbaixo ao seu March, e lentamente, conduz de volta às boxes.

O cadáver de Williamson foi encontrado ileso. A sua causa de morte foi intoxicação devido a gases nocivos...



domingo, 17 de agosto de 2008

Anarquista Duval

Pela estrada fora vinha um homem,
encoberto pelas sombras da noite.
Alguém lhe perguntou o nome:
"Sou uma miragem. Dizem,
que semeio o caos e a destruição
como o vento semeia as papoilas.
O meu nome... é Liberdade!"

Vinha pela estrada fora a liberdade,
encoberta pela noite das sombras.
"Sabes quem eu sou?",
perguntou ao candeeiro.
"És uma miragem. E pertences
ao livro dos sublinhados provocadores
que são os poetas.
Almas sonhadoras."

"Anarquista Duval, prendo-te em nome da Lei".
"E eu suprimo-te em nome da liberdade!"

(Adolfo Luxúria Canibal, in O.D. Rainha do Rock & Crawl, 1991)

Um Admirável Mundo Novo

Der Panther
Im Jardin des Plantes, Paris

Sein Blick ist vom Vorübergehn der Stäbe
so müd geworden, dass er nichts mehr hält.
Ihm ist, als ob es tausend Stäbe gäbe
und hinter tausend Stäben keine Welt.

Der weiche Gang geschmeidig starker Schritte,
der sich im allerkleinsten Kreise dreht,
ist wie ein Tanz von Kraft um eine Mitte,
in der betäubt ein grosser Wille steht.

Nur manchmal schiebt der Vorhang der Pupille
sich lautlos auf -. Dann geht ein Bild hinein,
geht durch der Glieder angespannte Stille -
und hört im Herzen auf zu sein.

(Rainer Maria Rilke, 1902) (Tradução)


Cansados e fustigados pelas cores, pelas luzes, e por milhares de estímulos insípidos e sensaborões, andamos em círculos como animais perdidos. A nossa vontade anestesiada e amainada jaz esquecida nalgum recanto obscuro do intímo. Para lá das grades coloridas e brilhantes que nos cercam já não queremos olhar, temerosos perante um Mundo que aos poucos se vai afastando da memória....

domingo, 10 de agosto de 2008

"And now for something completely different..."

Estava eu muito descansadinho a apreciar o meu café da manhã quando me deparei com um daqueles documentários que estavam tão em moda a alguns anos atrás, mas que agora, quando realmente fazem falta, raramente se vêem. O documentário em questão falava sobre o choque ideológico que ainda hoje existe no Afeganistão, e como não poderia deixar de ser, a certa altura lá tinha de haver uma referência à velha questão das 72 virgens à espera no paraíso. Vamos lá então pensar um bocadinho sobre isto:

Afinal o que é que eles entendem por uma virgem? Pessoalmente a imagem que me vem à cabeça é de uma menina extremamente inexperiente e verdinha, que não tem a mínima ideia de como lidar com um homem. É claro que após algumas sessões muito mal sucedidas, alguma paciência e muita frustração a anterior situação pode ser trabalhosamente corrigida (note-se que isto se aplica tanto a homens como a mulheres...). Agora, como se isto não fosse chatice que chegasse, aqueles gajos dizem-nos que temos de repetir esta merda 72 vezes!! Não me fodam! Se ainda dissessem que no outro lado estão à nossa espera 72 actrizes pornográficas, daquelas que têm um autêntico doutoramento na arte de bem foder, ora aí já coisa era outra. Aliás, até eu que não sou nada religioso estaria interessado, não ao ponto de fazer aqueles atentados suicidas que provocam tão graves dores de cabeça, mas talvez fosse capaz de entregar uns panfletos e tocar a umas campainhas... Das duas uma, ou os senhores fundamentalistas nunca deram uma queca a sério na vida (o que é muito provável e explicaria a sua predisposição para o suicídio), ou então o paraíso é um lugar mesmo muito aborrecido.

Só por curiosidade, para onde será que as actrizes porno vão quando morrem...?

Der Meister

Ora bem sei que ultimamente tenho estado um pouco ausente do meu próprio blog, mas de forma alguma este saiu da minha memória. A bem da verdade é que nos últimos dias a minha cabeça tem andado demasiado ocupada com questões, indagações e divagações filosóficas diversas, todas elas cortesia do Mestre. Esta não é de qualquer forma a primeira oportunidade que se me apresenta para partilhar de algumas das ideias do Mestre, mas desta vez não estava de facto preparado para a genial obra-prima que nos últimos tempos tanto prazer me tem dado. Uma vez que a ele devo tantas soberbas clarificações e linhas de (ir)raciocínio, isto já para não falar do próprio nome deste humilde espaço virtual, achei por bem trazer até vós algumas extrapolações da autoria de um verdadeiro mestre da literatura:

"Há qualquer coisa de belo na alegria, na ausência de dor, nesses dias suportáveis e amainados em que nem a dor nem o prazer ousam gritar, em que tudo sussurra e anda de mansinho em bicos dos pés. Mas comigo, infelizmente, acontece que é precisamente essa alegria que eu menos tolero; após algum tempo ela torna-se-me insuportável, de odiosa e repugnante, forçando-me a fugir, de desespero, para outras temperaturas, porventura trilhando caminhos de luxúria, mas se necessário for também de sofrimento. Quando passo algum tempo sem alegrias nem penas, respirando a sofribilidade morna e insípida dos chamados dias bons, nasce na minha alma de criança um tormento, uma revolta tão inflamada, que atiro a enferrujada lira da gratidão ao beatífico rosto do deus meio-adormecido da satisfação, e preferia uma dor francamente diabólica fervilhando dentro de mim a esta aprazível temperatura ambiente. Irrompe então em mim uma feroz avidez de sensações, de emoções fortes, uma raiva contra esta vida descolorada, banal, estandardizada e esterilizada, e um avassalador desejo de arrasar qualquer coisa, um armazém ou uma catedral, sei lá, ou eu próprio, pôr-me a fazer disparates arrojados, arrancar perucas a uns tantos ídolos venerados, proporcionar a uns tantos rapazinhos estudantes em revolta o ansiado salto até Hamburgo, seduzir uma miúda ou torcer o pescoço a uns tantos representantes da ordem universal burguesa. É que não havia coisa que eu mais detestasse, abominasse e execrasse no mais íntimo do meu ser: essa beatitude, essa saúde, esse bem-estar, esse acalentado optimismo do burguês, essa cultura farta e próspera do medíocre, do normal, do mediano."

-H.H. in "Der Steppenwolf", 1927.