segunda-feira, 25 de agosto de 2008

At the Crossroad

Uma lua cheia, polvilhada com pequenas nuvens fantasmagóricas, ilumina de forma intrusiva uma noite húmida e bafienta no delta do Mississippi em Tenessee. As luzes de Memphis encontram-se a quilómetros de distância, e foi aqui, junto a um dos pântanos da região rural, que uma dúzia de Americanos discriminados e segregados construiu do nada a sua ansiada Juke-Joint. Construída com muita vontade e poucos recursos, a humilde construção de tábuas velhas e pregos enferrujados, jaz precária longe de olhares indiscretos. Ela nunca aguentará uma intempérie, ela mal se aguenta às noites de quarta-feira, mas é forte o suficiente para suster em si própria o bradar de um povo e o fervilhar de uma cultura. Aí, bem distante, o espírito pode voar e e cintilar, longe do olhar reprovador da sociedade, longe do dedo acusatório do pastor e acima de tudo longe da opressão das plantações de algodão.

A noite já vai a meio, os músicos dedilham e sopram os seus instrumentos com gotas de suor a escorrer pelas faces. No ar a música hipnotiza, alegra, entristece e liberta. Não há uma única partitura ou pauta musical à vista, estes homens nada sabem da teoria, somente da alma. Os casais misturam-se por obra do acaso e a dança constante eleva a temperatura e os ânimos. Em cantos mais recatados, pares trocam carícias obscenas e beijos sacrílogos, nada que a oração de Domingo não ajude temporariamente a purificar, nem que seja até à semana seguinte. As garrafas de whiskey esvaziam-se como que por magia. "Estás a ver, Deus castiga! Fura-nos as garrafas todas!" - diz um dançarino à sua amante enquanto alcança outra garrafa. Lá fora, alguém ressona junto a uma poça de vótimo, antecipando uma divina dor de cabeça, completamente alheado aos dois indíviduos enlameados que se espancam por alguma razão que nunca será bem entendida.

Contudo, esta noite é diferente. Corre um rumor pelo ar, diz-se que um certo homem poderá aparecer esta noite. Um homem cujo o nome inspira tanta admiração como medo e desconfiança. O seu nome já se espalhou ao longo de todo o Mississippi, e não há um pântano que não tenha reconhecido o seu nome ou o seu rasto. Dizem que ele caminha lado a lado com o Demónio, que é seu amigo e aliado, e que este por sua vez o acolheu como um filho. E tal como todas as coisa que se relacionam com o infernal, este homem era sempre aguardado com profunda ansiedade e temor.

Mas a festa tem de continuar, o amanhã apenas trás infortúnio e mágoa, e aqui, dentro deste barracão reluzente, a música faz esquecer a renda da casa e a apanha nos campos. Os músicos prosseguem com os seus compassos improvisados e sublimes, todavia a carne é fraca mesmo quando a vontade é de ferro. Em breve as mãos ficam dormentes e as costas retesam-se cada vez mais: chega a altura do primeiro intervalo, o tempo ideal para todos recuperarem o fôlego frente a um copo cheio, ao mesmo tempo que se renovam as promessas de amor, tão eternas como uma noite. O burburinho levanta-se e ninguém se apercebeu da sombra que entrou com passos ligeiros e se sentou há uma hora na mesa do fundo. O vulto reconhece o seu momento e levanta-se. Após alguns passos na direcção do improvisado e miserável palco, este transforma-se a pouco e pouco num homem alto e magro. Transporta consigo uma mala de guitarra, o seu fato escuro tem um bom corte e os sapatos estão engraxados como se nunca tivessem atravessado o pantanal lá fora. Os olhares erguem-se quando este se instala no banco de um dos músicos e o tumulto cai drasticamente quando retira da mala a sua viola. A música que ecoa pela sala é diferente de qualquer outra, o seu dedilhar totalmente novo e revolucionário, e a sua voz revibra como um encantamento esquecido algures na memória. O público fica estático de indignação, de adoração, de espanto, de assombro, de pavor, mas nem uma única alma fica indiferente. Acompanhadas por aquela viola possuída, brotam músicas de amor e ódio, de ternura e violência, de esperança e de mágoa. Homens e mulheres escutam a vida transformada em música, uma vida que lhes pertence e que reconhecem em toda a sua plenitude proveniente do músico envolto em trevas.

Porém a música eventualmente termina, tal e qual como começou, sem aviso e sem desculpas. A reacção do público estende-se a toda a escala, desde os aplausos eufóricos em tom de aprovação ao vaiar mais insultuoso. Indiferente, o músico dirige-se discretamente ao dono daquela espelunca, levanta o seu pagamento e transforma-se novamente em vulto para desaparecer por entre os fumos fétidos do pântano. A clientela tem dificuldade em recuperar da intensidade do momento, para alguns a noite está definitivamente arruinada, para outros ela teve um final arrebatador.

Procede-se à lenta retirada, o sol nasce demasiado cedo nesta altura do ano e ninguém quer ser acusado de frequentar um local tão mal afamado. No ambiente de despedida o jovem Levee de 18 anos não deixa escapar a oportunidade de partilhar o seu entusiasmo com o velho Toledo, o veterano baixista:

-"Viste a forma como aquele homem mexia os dedos sobre as cordas! Foi espectacular. Um dia também hei-de de conseguir fazer uma coisa daquelas."
- "Não te entusiasmes assim tanto. Aquela maneira de tocar não era natural, era como se ele tivesse algum tipo de ajuda, como se alguém o ajudasse a puxar as cordas."
- "Do que é que estás pr'aí a falar".
- "Ouve o que te digo, aquele homem transporta consigo algo de sobrenatural. Para onde quer que ele vá ele leva algo nos ombros, algo de maligno."
- "Não me digas que também tu acreditas nesse disparate, esse rumor do músico que vendeu a alma ao Diabo num cruzamento...".
- "Olha que pode ser verdade... tão verdade como aquele homem se chamar Robert Johnson..."

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