sábado, 18 de julho de 2009

A Curiosa Morte do Sr. Borges

Já passava das quatro da manhã na noite em que o Sr. Borges se regou com gasolina e deitou fogo a si próprio. O fedor de carne queimada havia-se entranhado de tal maneira no escritório da sua casa, que os agentes policiais tiveram de pedir máscaras antes de irem cumprimentar os restos carbonizados do meu cordial vizinho. A vizinhança delirou, compadres e comadres salivavam como uma matilha de cães à espera da refeição enquanto o respeitado Sr. Borges era levado aos pedaços em lindas malas brancas hospitalares. Seguiram-se dias de grande satisfação no bairro, de repente parecia que o lugar de estacionamento já não era motivo de arrelia, nem sequer o dinheiro emprestado para o totobola servia para uma zanga. Juro que durante quase um mês nem uma única discussão futebolísitica no café da esquina houve, e quase nem quis acreditar quando vi uma vizinhança em peso a dar-se lindamente, como que esquecendo por completo quem era PS ou PSD, quem era lagarto ou lampião, quem era jeová ou evangelista. Foi um sonho... enquanto os mexericos não se esgotaram.

Dias houve em que ficava com a impressão que todos sabiam algo insólito sobre o amável Sr. Borges, porém, para minha grande desilusão, grande parte do que se contava mais não eram do que balelas sem o mínimo fundamento. Todavia, por entre a torrente de boatos lá consegui desenterrar algumas histórias realmente deliciosas, tal como o relato da Dona Estefânia, a beata cá do bairro, que testemunhara como nas últimas semanas o Sr. Borges era visita habitual na decrépita e minúscula biblioteca da igreja local, e afirmava igualmente que o Sr. Padre havia acusado o mencionado visitante do furto de alguns exemplares históricos. Ou pelo menos assim o havia acusado até ao dia em que o respeitado padre subiu ao púlpito com um braço a menos após uma semana de convalescência no hospital, umas daquelas maleitas que podem acontecer a idosos quando menos se espera. A partir desse dia as acusações cessaram.

Outro relato igualmente condimentado foi o do afamado Sr. Joaquim, o qual jurava a pés juntos que duas noites antes do singular acontecimento algo de inexplicável lhe havia sucedido. Contava que a meio da noite, dando pela falta da sua esposa a seu lado na cama, fora dar com ela estendida no chão da sala com a cara e os braços totalmente vermelhos e inchados. Enfiou-a de imediato na carrinha e teria saído logo a correr assim que encontrou as chaves da viatura, não fosse um inominável fedor que provinha da casa de banho acompanhado do som de turbulência nas canalizações. Sem capacidade de discernimento acendeu a amarela luz que iluminava os azulejos verdes da minúscula divisão sanitária e espreitou. O inimaginável cheiro a podridão impediu-o sequer de entrar, contudo conseguiu reparar na água viscosa e avermelhada que saía do ralo da banheira. Mas o que fez o pobre Sr. Joaquim correr que nem um perdido foi visão a que foi submetido quando uma sucessão de estridentes estalidos o fez revirar o olhos na direcção da sanita para dar de caras com uma autêntica multidão de baratas castanho-avermelhadas de tamanho pouco credível, a assomar de todos os orifícios aí existentes e cobrindo o assento por completo. Sem forma nem maneira de raciocinar, o Sr. Joaquim limitou-se a fugir e a conduzir como um morto-vivo até ao hospital. Quando os médicos da urgência se viram a braços com uma homem em estado de choque e uma doente portadora de uma infecção viral de estirpe desconhecida, acharam por bem alertar os serviços municipais. Estes, por sua vez, ficaram tão assombrados com o que haviam encontrado, que montaram toda a canalização de raíz, destruindo e obstruindo os velhos tubos, oferecendo ainda uma desparasitação completa. Em troca, e para garantir que a esposa estaria sob os melhores cuidados médicos, foi pedido ao Sr. Joaquim que mantivesse o silêncio, apenas para não gerar o pânico perante uma possível pandemia, e quiçá evitar qualquer suspeita quanto ao conteúdo da velha rede de esgostos que ainda servia um punhado de habitações. Devo dizer que fiquei bastante admirado com a renovada posição de força do Sô J'aquim, aproveitando a recente tragédia para se revoltar contra o sistema. Talvez lhe faça uma pequena visita um dia destes para partilhar da sua coragem.

Para terminar, o relato mais marcante e aquele que mais atenção mereceu por parte das forças da autoridade, foi sem dúvida o da Sra. Natália, que vive frente à casa do falecido Sr. Borges. Ora, na noite anterior ao macabro incidente pirotécnico, a Sra. Natália, uma idosa eloquente e profundamente irritante, supostamente presenciou a última aparição do Sr. Borges. Segundo o seu relato, estava ela, como de costume, a regar as suas hortênsias no quintal por hora do lusco-fusco, quando ouviu o portão o Sr. Borges bater. Ergueu os olhos e tal não foi a sua surpresa ao reparar que o bondoso Sr. Borges se arrastava porta adentro. A dita senhora avançou de imediato por a forma a melhor satisfazer a sua avidez por bisbilhotice, e ficou aterrada ao constatar que o seu vizinho se arrastava sem pernas, verificando-se em seu lugar duas amputações perfeitamente cicatrizadas a meio da coxa. Em questão de segundos a onírica miragem desapareceu na escuridão do interior da sua casa, fechando a porta logo atrás de si, e deixando a Sra. Natália a questionar-se quanto à veracidade e realidade do que acabara de testemunhar.

E assim foi, o rumores cresceram e viajaram de boca em boca, a polícia anotou os poucos testemunhos que pareciam ter um mínimo de relevância e a vida continuou com toda a regularidade... até ao dia em que me bateram a porta e me perguntaram se tinha alguma informação relevante. Mostrei-me genuinamente prestável e convidei-os imediatamente a entrar para que pudéssemos conversar calmamente. O senhores agentes foram de uma grande amabilidade, tendo-me, inclusive, alertado para o facto do crucifixo medieval na minha sala se encontrar deveras descaído. Agradeci e com prontidão o coloquei na sua posição correcta, amaldiçoando as velhas paredes que já não seguravam nada no sítio. Os cordiais agentes explicaram-me muito resumidamente todo o ponto de situação e perguntaram-me se poderia providenciar algum esclarecimento quanto à fatal iniciativa do Sr. Borges. Ponderei a questão e respondi com sinceridade: "Talvez estivesse aborrecido?". Os polícias entreolharam-se, proferiram uma espécie de despedida e abandonaram a minha residência. Uma pena realmente, por vezes um pouco de companhia pode ser um excelente complemento. Ao fechar a porta a minha audição aguça-se: o meu andamento favorito está de momento a ser tocado. Don Giovanni, a minha ópera preferida de Mozart: este serão sim, promete. Na sala, mesmo ao lado dos sofás onde os meus hóspedes se sentaram, encontra-se uma mesa acabadinha de pôr, mas esta terá de esperar pois são horas da missa das sete, aquela que antecede a refeição. Agarro na minha Bíblia e saio de casa com pouca fé, pois as páginas em aramaico há muito foram profanadas e a minha mente não consegue abstrair-se do belíssimo presunto que me espera na arca congeladora.

Sem comentários: